Literatura está intimamente relacionada com práticas sociais. Nesse sentido, propomos uma gama de correlações entre as diversas manifestações literárias e a sociedade contemporânea. Assim, buscaremos no espaço social elementos que interajam diretamente com a arte literária.

Dessa forma, este blog objetiva analisar e expor elementos da realidade social, fazendo um contra ponto com a literatura e seus modos de encarar a realidade e a cultura das diversas épocas da sociedade.

Esperamos de você leitor a interação e a sugestão de novos temas, a discordância ou a concordância com as críticas aqui relacionadas, tendo em vista que pensar em Literatura não é apenas propor teorias literárias, mas sim promover a crítica à sociedade, tentando encontrar elementos que sejam favoraveis ou não à nossa formação enquanto leitores e apreciadores de leitura e cultura. Assim, este espaço é destinado aos professores de Língua Portuguesa e Literaturas, graduandos de Letras, alunos do nível médio e ao público que gosta de uma leitura crítica acerca dos assuntos que envolvam a sociedade.

Boas leituras!

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Eu...

Florbela Espanca


Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!
Corridinho
Adélia Prado

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

terça-feira, 3 de julho de 2012

As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
Carlos Drummond de Andrade
NÃO DEIXE O AMOR PASSAR

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento,houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d’água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente: O Amor.

Por isso, preste atenção nos sinais - não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O AMOR.
Carlos Drummond de Andrade

sábado, 18 de fevereiro de 2012

O amor

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de *dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar..

Fernando Pessoa

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos
Poema de Manoel de Barros
Retirado do livro: Exercícios de ser criança:
O Menino que carregava água na peneira
Editora Salamandra
 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O Santo que não acreditava em Deus

Temos várias espécies de peixe neste mundo, havendo o peixe que come lama, o peixe que come baratas do molhado, o peixe que vive tomando sopa fazendo chupações na água, o peixe que, quando vê a fêmea grávida pondo ovos, não pode se conter e com agitações do rabo lava a água de esporras a torto e a direito ficando a água leitosa, temos o peixe que persegue os metais brilhantes, umas cavalas que pulam para fora bem como tainhas, umas corvinas quase que atômicas, temos por exemplo o niquim, conhecido por todas as orlas do Recôncavo, o qual peixe não somente fuma cigarros e cigarrilhas, preferindo a tálvis e o continental sem filtro, hoje em falta, mas também ferreia pior do que uma arraia a pessoa que futuca suas partes, rendendo febre e calafrios, porventura caganeiras, mormente frios e tantas coisas, temos os peixes tiburones e cações, que nunca podem parar de nadar para não morrer afogados.

É engraçado que eu entenda tanto de peixe e quase não pegue, mas entendo. Os peixes miúdos de moqueca são: o carapicu, o garapau, o chicharro e a sardinha. Entremeados, podemos ferrar o baiacu e o barrigame-dói, o qual o primeiro é venenoso e o segundo causa bostas soltas e cólicas. De uma ponte igual a essa, que já foi bastante melhor, podemos esperar também peixes de mais de palmo, porém menos de dois, que por aqui passam, dependendo do que diz o rei dos peixes, dependendo de uma coisa e outra. Um budião, um cabeçudo, um frade, um barbeiro. Pode ser um robalo ou uma agulha ou ainda uma moréia, isto dificilmente. O bom da  pesca do peixe miúdo é quando estão mordendo verdadeiramente e sentamos na rampa ou então vamos esfriando as virilhas nestas águas de agosto e ficamos satisfeitos com aquela expedição de pescaria e nada mais desejamos da vida.

Ou quando estamos como assim nesta canoa, porém nada mordendo, somente carrapatos. Nesses peixes miúdos de moqueca, esquecia eu de mencionar o carrapato, que não aparece muito a não ser em certas épocas, devendo ter recebido o nome de carrapato justamente por ser uma completa infernação, como os carrapatos do ar. Notadamente porque esse peixe carrapato tem a boca mais do que descomunal para o tamanho, de modo que botamos um anzol para peixes mais fundos, digamos um vermelho, um olho-de-boi, um peixe-tapa, uma coisa decente, quando que me vem lá de baixo, parecendo uma borboletinha pendurada na ponta da linha, um carrapato. Revolta a pessoa.

E estou eu colocando uma linha de náilon que me veio de Salvador por intermédio de Luiz Cuiúba, que me traz essa linha verde e grossa, com dois chumbos de cunha e anzóis presos por uma espécie de rosca de arame, linha esta que não me dá confiança, agora se vendo que é especializada em carrapatos. Mas temos uma vazante despreocupada, vem aí setembro com suas arraias no céu e, com esses dois punhados de camarão miúdo que Sete Ratos me deu, eu amarro a canoa nos restos da torre de petróleo e solto a linha pelos bordos, que não vou me dar ao desfrute de rodar essa linha esquisita por cima da cabeça como é o certo, pode ser que alguém me veja. Daqui diviso os fundos da Matriz e uns meninos como formiguinhas escorregando nas areias descarregadas pelos saveiros, mas o barulho deles chega a mim depois da vista e assim os gritos deles parecem uns rabos compridos. Temos uma carteira quase cheia de cigarros; uma moringa, fresca, fresca; meia quartinha de batida de limão; estamos sem cueca, a água, se não fosse a correnteza da vazante, era mesmo um espelho; não falta nada e então botamos o chapéu um pouco em cima do nariz, ajeitamos o corpo na popa, enrolamos a linha no tornozelo e quedamos, pensando na vida.

Nisso começa o carrapato, que no princípio tive na conta de baiacus ladrões. Quem está com dois anzóis dos grandes, pegou isca de graça e a mulher já mariscou a comida do meio-dia pode ser imaginado que não vai dar importância a beliscão leve na linha. Nem leve nem pesado. Se quiser ferrar, ferre, se não quiser não ferre. Isso toda vez eu penso, como todo mundo que tem juízo, mas não tem esse santo que consiga ficar com aqueles puxavantes no apeador sem se mexer e tomar uma providência. Estamos sabendo: é um desgraçado de um baiacu. Se for, havendo ele dado todo esse  trabalho, procuremos arrancar o anzol que o miserável engole e estropia e trataremos de coçar a barriga dele e, quando inchar, dar-lhe um pipoco, pisando com o calcanhar. Mas como de fato não é um baiacu, mas um carrapato subdesenvolvido, um carrapatinho de merda, com mais boca do que qualquer outra coisa, boca essa assoberbando um belo anzol preparado pelo menos para um dentão, não se pode fazer nada. Um carrapato desses a pessoa come com uma exclusiva dentada com muito espaço de sobra, se valesse a pena gastar fogo com um infeliz desses. Vai daí, carrapato na poça d'água do fundo da canoa e, dessa hora em diante, um carrapato por segundo mordendo o anzol, uma azucrinarão completa. Foi ficando aquela pilha de carrapatinhos no fundo da canoa e eu pensei que então não era eu quem ia aparecer com eles em casa, porque com certeza iam perguntar se eu tinha catado as costas de um jegue velho e nem gato ia querer comer aquilo. Pode ser que essa linha de Cuiúba tenha especialidade mesmo em carrapato, pode ser qualquer coisa, mas chega a falta de vergonha ficar aqui fisgando esses carrapatos, de maneira que só podemos abrir essa quartinha, retirar o anzol da água, verificar se vale a pena remar até o pesqueiro de Paparrão nesta soalheira, pensar que pressa é essa que o mundo não vai acabar, e ficar mamando na quartinha, viva a fruta limão, que é curativa.

 Nisto que o silêncio aumenta e, pelo lado, eu sinto que tem alguma coisa em pé pelas biribas da torre velha e eu não tinha visto nada antes, não podendo também ser da aguardente, pois que muito mal tomei dois goles. Ele estava segurando uma biriba coberta de ostras com a mão direita, em pé numa escora, com as calças arregaçadas, um chapéu velho e um suspensório por cima da camisa.

— Ai égua! — disse eu. — Veio nadando e está enxuto?

—  Eu não vim nadando — disse ele. — Muito peixe?

— Carrapato miúdo.

— Olhe ali — disse ele, mostrando um rebrilho na água mais para o lado da Ilha do Medo. — Peixe.

Ora, uma manta de azeiteiras vem vindo bendodela, costeando o perau. É conhecida porque quebra a água numa porção de pedacinhos pela flor e aquilo vai igual a muitas lâminas, bordejando e brilhando. Mas dessas azeiteiras, como as peixas chamadas solteiras, não se pode esperar que mordam anzol, nem mesmo morram de bomba.

— Azeiteira — disse eu. — Só mesmo uma bela rede. E mais canoa e mais braço.

— Mas eles ficam pulando — disse ele, que tinha um sorriso entusiasmado, possivelmente porque era difícil não perceber que a água em cima como que era o aço de um espelho, só que aço mole como o do termômetro, e então cada peixe que subia era um orador. Aí eu disse, meu compadre, se vosmecê botar um anzol e uma dessas meninas gordurentas morder esse tal anzol, eu dou uma festa para você no hotel — ainda que mal pergunte, como é a sua graça?
Assim levamos um certo tempo, porque ele se encabulou, me afirmando que não apreciava mentir, razão por que preferia não se apresentar, mas eu disse que não botava na minha canoa aquele de quem não saiba o nome e então ficasse ele ali o resto da manhã, a tarde e a noite pendurado nas biribas, esperando Deus dar bom tempo. Mas que coisa interessante, disse ele dando um suspiro, isso que você falou.

— É o seguinte — disse ele, dando outro suspiro. — É porque eu sou Deus.

Ora, ora me veja-me. Mas foi o que ele disse e os carrapatinhos, que já gostam de fazer corrote-corrote com a garganta quando a gente tira a linha da água ficaram muitíssimo assanhados.

— É mais o seguinte — continuou ele, com a expressão de quem está um pouco enfadado. — Está vendo aqui? Não tem nada. Está vendo alguma coisa aqui? Nada! Muito bem, daqui eu vou tirar uma porção de linhas e jogar no meio dessas azeiteiras. E dito e feito, mais ligeiro que o trovão, botou os braços para cima e tome tudo quanto foi tipo de linha saindo pelos dedos dele, parecia um arco-íris. Ele aí ficou todo monarca, olhando para mim com a cara de quem eu não sou nem principiante em peixe e pesca. Mas o que aconteceu? Aconteceu que, na mesma hora, cada um dos anzóis que ele botou foi mordido por um carrapato e, quando ele puxou, foi aquela carrapatada no meio da canoa. Eu fiz: quá-quá-quá, não está vendo tu que temos somente carrapatos? Carrapato, carrapato, disse eu, está vendo a cara do besta? Ele, porém, se retou.

— Não se abra, não — disse ele — que eu mando o peixe lhe dar porrada.

— Porrada dada, porrada respostada — disse eu.

Para que eu disse isto, amigo, porque me saiu um mero que não tinha mais medida, saiu esse mero de junto assim da biriba, dando um pulo como somente cavacos dão e me passou uma rabanada na cara que minha cara ficou vermelha dois dias depois disto.

— Donde saiu essa, sai mais uma grosa! — disse ele dando risada, e o mero ficou a umas três braças da canoa, mostrando as gengivas com uma cara de puxa-saco.

— Não procure presepada, não — disse ele. — Senão eu mando dar um banho na sua cara.

— Mande seu banho — disse eu, que às vezes penso que não tenho inteligência.

Pois não é que ele mandou esse banho, tendo saído uma onda da parte da Ponta de Nossa Senhora, curvando como uma alface aborrecida a ponta da coroa, a qual onda deu tamanha porrada na canoa que fiquemos flutuando no ar vários momentos.

— Então? — disse ele. — Eu sou Deus e estou aqui para tomar um par de providências, sabe vosmecê onde fica a feira de Maragogipe?

— Qual é feira de Maragogipe nem feira de Gogiperama — disse eu, muito mais do que emputecido, e fui caindo de pau no elemento, nisso que ele se vira num verdadeiro azougue e me desce mais que quatrocentos sopapos bem medidos, equivalentemente a um catavento endoidado e, cada vez que eu levantava, nessa cada vez eu tomava uma porrada encaixada. Terminou nós caindo das nuvens, não sei qual com mais poeira em torno da garupa. Ele, no meio da queda, me deu uns dois tabefes e me disse: está convertido, convencido, inteirado, percebido, assimilado, esclarecido, explicado, destrinchado, compreendido, filho de uma puta? E eu disse sim senhor, Deus é mais. Pare de falar em mim, sacaneta, disse ele, senão lhe quebro todo de porrada. Reze aí um padre-nosso antes que eu me aborreça, disse ele. Cale essa matraca, disse ele.

Então eu fui me convencendo, mesmo porque ele não estava com essas paciências todas, embora se estivesse vendo que ele era boa pessoa. Esclareceu que, se quisesse, podia andar em cima do mar, mas era por demais escandaloso esse comportamento, podendo chamar a atenção. Que qualquer coisa que ele resolvesse fazer ele fazia e que eu não me fizesse de besta e que, se ele quisesse, transformava aqueles carrapatos todos em lindos robalos frescos. No que eu me queixei que dali para Maragogipe era um bom pedaço e que era mais fácil um boto aparecer para puxar a gente do que a gente conseguir chegar lá antes que a feira acabasse e aí ele mete dois dedos dentro da água e a canoa sai parecendo uma lancha da Marinha, ciscando por cima dos rasos e empinando a proa como se fosse coisa, homem ora. Achei falta de educação não oferecer um pouco do da quartinha, mas ele disse que não estava com vontade de beber.

Nisso vamos chegando muito rapidamente a Maragogipe e Deus puxa a poita desparramando muitos carrapatos pelos lados e fazendo a alegria dos siris que por ali pastejam e sai como que nem um peixe-voador. No meio do caminho, ele passa bastante desencalmado e salva duas almas com um toque só, uma coisa de relepada como somente quem tem muita prática consegue fazer, vem com a experiência. Porque ele nem estava olhando para essas duas almas, mas na passagem deu um toque na orelha de cada uma e as duas saíram voando ali mesmo, igual aos martins depois do mergulho. Mas aí ele ficou sem saber para onde ia, na beira da feira, e então eu cheguei perto dele.

— Tem um rapaz aqui — disse Deus, coçando a gaforinha meio sem jeito — que eu preciso ver.

— Mas por que vosmecê não faz um milagre e não acha logo essa pessoa? — perguntei eu, usando o vosmecê, porque não ia chamar Deus de você, mas também não queria passar por besta se ele não fosse.

— Não suporto fazer milagre — disse ele. — Não sou mágico. E, em vez de me ajudar, por que é que fica aí falando besteira?

Nessa hora eu quase ia me aborrecendo, mas uma coisa fez que eu não mandasse ele para algum lugar, por falar dessa maneira sem educação. É que, sendo ele Deus, a pessoa tem de respeitar. Minto: três coisas, duas além dessa. A segunda é que pensei que ele, sendo carpina por profissão, não estava acostumado a finuras, o carpina no geral não alimenta muita conversa nem gosta de relambórios. A terceira coisa é que, justamente por essa profissão e acho que pela extração dele mesmo, ele era bastante desenvolvidozinho, aliás, bem dizendo, um pau de homem enormíssimo, e quem era que estava esquecendo aquela chuva de sopapos e de repente ele me amaldiçoa feito a figueira e eu saio por aí de perna peca no mínimo, então vamos tratar ele bem, quem se incomoda com essas bobagens? Indaguei com grande gentileza como é que eu ia ajudar que ele achasse essa bendita dessa criatura que ele estava procurando logo na feira de Maragogipe, no meio dos cajus e das rapaduras, que ele me desculpasse, mas que pelo menos me dissesse o nome do homem e a finalidade da procura. Ele me olhou assim na cara, fez até quase que um sorriso e me explicou que ia contar tudo a mim, porque sentia que eu era um homem direito, embora mais cachaceiro do que pescador. Em outro caso, ele podia pedir segredo, mas em meu caso ele sabia que não adiantava e não queria me obrigar a fazer promessa vã. Que então, se eu quisesse, que contasse a todo mundo, que ninguém ia acreditar de qualquer jeito, de forma que tanto faz como tanto fez. E que escutasse tudo direito e entendesse de uma vez logo tudo, para ele não ter de repetir e não se aborrecer. Mas Deus, ah, você não sabe de nada, meu amigo, a situação de Deus não está boa. Você imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino, entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade. Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado, ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta. É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência. Senão, disse ele, senão... e fez uma menção que ia dar um murro com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não deu, graças a Deus.

Então, explicou Deus, eu vivo procurando um santo aqui, um santo ali, parecendo até que sou eu quem estou precisando de ajuda, mas não sou eu, é vocês, mas tudo bem. Agora, é preciso que você me entenda: o santo é o que faz alguma coisa pelos outros, porque somente fazendo pelos outros é que se faz por si, ao contrário do que se pensa muito por aí. Graças a mim que de vez em quando aparece um santo, porque senão eu ia pensar que tinha errado nos cálculos todos. Fazer por si é o seguinte: é não me envergonhar de ter feito vocês igual a mim, é só o que eu peço, é pouco, é ou não é? Então quem colabora para arrumar essa situação eu tenho em grande apreço. Agora, sem milagre. Esse negócio de milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra. O santo anda dificílimo. Quando eu acho um, boto as mãos para o céu.
Tendo eu perguntado como é que ele botava as mãos para o céu e tendo ele respondido que eu não entendia nada de Santíssima Trindade e calasse minha boca, esclareceu que estava procurando um certo Quinca, conhecido como Das Mulas, que por ali trabalhava. Mas como esse Quinca, perguntei, não pode ser o mesmo Quinca! Pois esse Quinca era chamado Das Mulas justamente por viver entre burros e mulas e antigamente podendo ter sido um rapaz rico, mas havendo dado tudo aos outros e passando o tempo causando perturbação, ensinando besteiras e fazendo questão de dar uma mão a todos que ele dizia que eram boas pessoas, sendo estas boas pessoas dele todas desqualificadas. Porém ninguém fazia nada com ele porque o povo gostava muito dele e, quando ele falava, todo mundo escutava. Além de tudo, gastava tudo com os outros e vivia dando risadas e tomava poucos banhos e era um homem desaforado e bebia bastante cana, se bem que só nas horas que escolhia, nunca em outras. E, para terminar, todo mundo sabia que ele não acreditava em Deus, inclusive brigava bastante com o padre Manuel, que é uma pessoa distintíssima e sempre releva.

— Eu sei — respondeu Deus. — Isto é mais uma dificuldade.

E, de fato, fomos vendo que a vida de Deus e dos santos é muito dificultosa desde aí, porque tivemos de catar toda a feira atrás desse Quinca e sempre onde a gente passava ele já tinha passado. Ele foi encontrado numa barraca, falando coisas que a mulher de Lóide, aquela outra santa, fingia que achava besteira, mas estava se convencendo e então eu vi que aquilo ia acabar dando problema. Olha aí, mostrei eu, ele ali causando divergência. É isso mesmo, disse Deus com olhar de grande satisfação, certa feita eu também disse que tinha vindo separar homem e mulher. Não quero nem saber, me apresente.
E então tivemos um belo dia, porque depois da apresentação parece que Quinca já tinha tomado algumas e fomos comer um sarapatel, tudo na maior camaradagem, porque estava se vendo que Quinca tinha gostado de Deus e Deus tinha gostado dele, de maneira que ficaram logo muitíssimo amigos e foi uma conversa animada que até às vezes eu ficava meio de fora, eles tinham muita coisa a palestrar. Nisso tome sarapatel até as três e todo mundo já de barriga altamente estufada, quando que Quinca me resolve tomar uma saideira com Deus e essa saideira é nada mais nada menos do que na casa de Adalberta, a qual tem mulheres putas. Nessa hora, minha obrigação, porque estou vendo que Deus está muito distraído e possa ser que não esteja acostumado com essas aguardentes de Santo Amaro que ele tomou mais de uma vintena, é alertar. Chamei assim Deus para o canto da barraca enquanto Quinca urinava e disse olhe, você é novo por aqui, pelo menos só conhecíamos de missa, de maneira que essa Adalberta, não sei se você sabe, é cafetina, não deve ficar bem, não tenho nada com isso, mas não custa um amigo avisar. Ora, rapaz, você tem medo de mulher, disse Deus, que estava mais do que felicíssimo e, se não fosse Deus, eu até achava que era um pouco do efeito da bebida. Mas, se é ele que fala assim, não sou eu que fala assado, vá ver que temos lá alguma rapariga chamada Madalena, resolvi seguir e não perguntar mais nada.

Pois tomaram mais e fizeram muito grande sucesso com as mulheres e era uma risadaria, uma coisa mesmo desproporcionada, havendo mesmo um serviço de molho pardo depois das seis, que a fome apertou de novo, e bastantes músicas. Cada refrão que Quinca mandava, cada refrão Deus repicava, estava uma farra lindíssima, porém sem maldade, e Deus sabia mais sambas de roda que qualquer pessoa, leu mãos, recitou, contou passagens, imitou passarinho com perfeição, tirou versos, ficou logo estimadíssimo. Eu, que estava de reboque bebendo de graça e já tinha aprendido que era melhor ficar calado, pude ver com o rabo do olho que ele estava fazendo uns milagres disfarçados, a mim ele não engana. As mulheres todas parece que melhoraram de beleza, o ambiente ficou de uma grande leveza, a cerveja parecia que tinha saído do congelador porém sem empedrar e, certeza eu tenho mas não posso provar, pelo menos umas duas blenorragias ele deve de ter curado, só pelo olhar de simpatia que ele dava. E tivemos assim belas trocas de palavras e já era mais do que onze quando Quinca convidou Deus para ver as mulas e foram vendo mulas que parecia que Deus, antes de fazer o mundo, tinha sido tropeiro. E só essa tropica e essa não tropica, essa empaca e essa não empaca, essa tem a andadura rija, essa pisa pesado, essa está velha, um congresso de muleiros, essa é que é a verdade.

É assim que vemos a injustiça, porque, a estas alturas, eu já estou sabendo que Deus veio chamar Quinca para santo e que dava um trabalho mais do que lascado, só o que ele teve de estudar sobre mulas e decorar de sambas de roda deve ter sido uma esfrega. Mas eu já estava esperando que, de uma hora para outra, Deus desse o recado para esse Quinca das Mulas. Como de fato, numa hora que a conversa parou e Quinca estava só estalando a língua da cachaça e olhando para o espaço, Deus, como quem não quer nada, puxou a prosa de que era Deus e tal e coisa.

Ah, para quê? Para Quinca dizer que não acreditava em Deus. E para Deus, no começo com muita paciência, dizer que era Deus mesmo e que provava. Fez uns dois milagres só de efeito, mas Quinca disse que era truques e que, acima de tudo, o homem era homem e, se precisasse de milagre, não era homem. Deus, por uma questão de honestidade, embora o coração pedisse contra nessa hora, concordou. Então ande logo por cima da água e não me abuse, disse Quinca. E eu só preocupado com a falta de paciência de Deus, porque, se ele se aborrecesse, eu queria pelo menos estar em Valença, não aqui nesta hora. Mas ele só patati-patatá, que porque ser santo era ótimo, que tinha sacrifícios mas também tinha recompensas, que deixasse daquela besteira de Deus não existir, só faltou prometer dez por cento. Mas Quinca negaceava e a coisa foi ficando preta e os dois foram andando para fora, num particular e, de repente, se desentenderam. Eu, que fiquei sentado longe, só ouvia os gritos, meio dispersados pelo vento.

— Você tem que ser santo, seu desgraçado! — gritava Deus. — Faz-se de besta! — dizia Quinca.

E só quebrando porrada, pelo barulho, e eu achando que, se Deus não ganhasse na conversa, pelo menos ganhava na porrada, eu já conhecia. Mas não era coisa fácil. De volta de meia-noite e meia até umas quatro, só se ouvia aquele cacete: deixe de ser burro, infeliz! cale essa boca, mentiroso! E por aí ia. Eu só sei que, umas cinco horas mais ou menos, com Gerdásia do mercado trazendo um mingau do que ela ia vender na praça e fazendo a caridade de dar um pouco para mim e para Deus, por sinal que ele toma mingau como se fosse acabar amanhã e não tivesse mais tempo, os dois resolveram apertar a mão, porém não resolveram mais nada: nem Deus desistia de chamar Quinca para o cargo de santo, nem Quinca queria aceitar esse cargo.

— Muito bem — disse Deus, depois de uma porção de vezes que todo mundo dizia que já ia, mas enganchava num resto de conversa e regressava. — Eu volto aqui outra vez.

— Voltar, pode voltar, terá comida e bebida — disse Quinca. — Mas não vai me convencer!

— Rapaz, deixe de ser que nem suas mulas!

— Posso ser mula, mas não tenho cara de jegue!

E aí mais pau, mas, quando o dia já estava moço, aí por umas seis ou sete horas da manhã, estamos Deus e eu navegando de volta para Itaparica, nenhum dos dois falando nada, ele porque fracassou na missão e eu porque não gosto de ver um amigo derrotado. Mas, na hora que nós vamos passando pelas encostas do Forte, quase nos esquecendo da vida pela beleza, ele me olhou com grande simpatia e disse: fracasso nada, rapaz. não falei nada, disse eu. Mas sentiu, disse ele. Se incomode não, disse ele, nem toda pesca rende peixes. E então ficou azul, esvoaçou, subiu nos ares e desapareceu no céu."


João Ubaldo Ribeiro

O conto acima, publicado em "Já Podeis da Pátria Filhos e Outras Histórias", Editora Nova Fronteira, 1991, foi selecionado por Ítalo Moriconi e consta do livro "Os cem melhores contos brasileiros do século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 478.

domingo, 15 de janeiro de 2012

CONTISTAS IMPORTANTES

Adélia Prado - Adolfo Caminha - Airton Monte - Alcântara Machado - Aleilton Fonseca - Amílcar Bettega - Ana Miranda - Aníbal Machado - Artur Azevedo - Astolfo Lima - Astrid Cabral - Autran Dourado

Barros Pinho - Batista de Lima - Bernardo Élis - Braga Montenegro

Caio Fernando Abreu - Caio Porfírio Carneiro - Carlos Emílio Corrêa Lima - Cecília Prada - Charles Kiefer - Chico Lopes - Cida Sepúlveda - Clarice Lispector - Coelho Neto - Cyro de Mattos
Dalton Trevisan - Darcy Azambuja - Deonísio da Silva - Dimas Carvalho

Edson Guedes de Morais - Eduardo Campos - Emanuel Medeiros Vieira - Enéas Athanázio

Fabrício Carpinejar - Fernando Bonassi - Francisco Miguel de Moura - Francisco Sobreira - Fran Martins

Gilmar de Carvalho - Glauco Mattoso - Graciliano Ramos - Guimarães Rosa - Gustavo Barroso

Hélio Pólvora - Herberto Sales - Herman Lima - Humberto de Campos

Ignácio de Loyola - Ivan Ângelo

João Gilberto Noll - João Silvério Trevisan - João Simões Lopes - João Ubaldo Ribeiro - Jorge Pieiro - José Cândido de Carvalho - José Hélder de Souza - José J. Veiga - Juarez Barroso

Lima Barreto - Lourenço Cazarré - Luiz Ruffato - Luiz Vilela - Lygia Fagundes Telles

Machado de Assis - Manoel Lobato - Marçal Aquino - Marcelino Freire - Márcia Denser - Mário de Andrade - Maximiano Campos - Moacyr Scliar - Monteiro Lobato - Moreira Campos - Murilo Rubião

Nélida Piñon - Nelson de Oliveira - Nilto Maciel

Oliveira Paiva - Orígenes Lessa - Osman Lins - Otto Lara Rezende

Paulo de Tarso Pardal - Pedro Salgueiro

Rachel de Queiroz - Rachel Jardim - Ribeiro Couto - Rinaldo de Fernandes - Ronaldo Cagiano - Ronaldo Correia de Brito - Rubem Fonseca

Sérgio Faraco - Sérgio Sant’anna - Sérgio Telles - Sônia Coutinho

Tânia Jamardo Faillace - Tércia Montenegro

Victor Giudice






Passeio Noturno

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.

Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.

Rubem Fonseca 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A CARTA

A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria doença do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras, seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?

- Me leia a carta. Me entregava o papel marrotado, dobrado em mil sujidades. Era a Carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no zero. A carta, ele a enviara fazia anos muito coçados. Sempre era a mesma, já eu lhe conhecia de memória, vírgula a vírgula.

- Outra vez, mamã Cacilda?
- Sim, maistravez.

Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de Cacilda, desde que chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração. Era o dito da velha.

Agora, passados os tempos, aquele papel era a única prova do seu Ezequiel. Parecia que só pelo escrito, sempre mais desbotado, seu filho acedia à existencia. Nas primeiras vezes eu até me procedia à leitura, traduzindo a autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas, pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que palavras. O recheio nem era maior que o formato.

Porque naquela escrita não havia nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra desaprendendo o amor? Em Ezequiel, morrera o filho para nascer o tropeiro? Nas primeiras leituras, meu coração muito se apertava em inventadas dedicatórias aquela mãe. Enquanto lia, eu espreitava o rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de tristeza. Nada. A velha se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alivio, desculpar o menino que não sobrevivera à farda. Nem se entristenha, mamã Cacilda. Também, maneira como carregaram esse menino para a tropa! Sem camisa, sem mala, sem notícia. Atirado para os fundos do camião como se faz às encomendas sem endereço.

- Entenda, mamã Cacilda.

Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que Dormia, debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha. Como o rio, num açude, se disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava.

- Continua. Por que paraste?

Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso gatafunho, despedida Sem nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim «unidade, trabalho, vigilância»? Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas mesmo poucas são infinitas. Eu lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi então que passei a alongar aquela tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada leitura, uma nova carta surgia da velha missiva.

E o Ezequiel, em minha imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com méritos para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo, houvessem em minha voz ondas de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo se passando na bondade de uma mentira. Diz-se na própria doideira dos vamos loucurando. Até, um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre, a existencia. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos bandos. A mãe nem suspeitava. Perguntei desconhecia-se o paradeiro dela. Ficasse eu atribuido de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei. Nesse fim de tardinha, porém, mamã Cacilda não compareceu em minha casa. Assustei adivinhara ela o destino do Ezequiel? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercicio de saudade? Decidi ir ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente. Cacilda cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho.

- Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas.

Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar aquele luto? Comemos. Melhor fingimos comer. Faz conta é uma refeição, meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta.

- E agora, diz porque vieste nesta minha casa?
Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio.
- Me vens ler o meu filho?

Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria acertar os meus tons, evitando o emergir de alguma tremura. Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela sorria sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro relance, que eu vi a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao meu virar, ela emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo de conta que aquele adeus era igual aos todos que já lhe concedera.


Mia Couto

FELICIDADE CLANDESTINA - CLARICE LISPECTOR

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

CAÇADA NOTURNA

Carregando minha pasta do trabalho, repleta de processos da vara da família, entrei em casa e desfiz a gravata. Minha esposa estava deitada na cama, assistindo algum programa da TV a cabo e bebendo vinho branco. Ao perceber minha presença, ela disse, sem tirar os olhos da TV, você precisa de férias! Está com a cara péssima, deve ser cansaço. Percebi que meus filhos estavam em casa, há barulho de rock e de videogame. Você não vai guardar essa pasta? Perguntou minha esposa; tira essa roupa social, bebe uma taça de vinho, você vai se sentir melhor.
Fui ao escritório, onde gostava de ficar sozinho, sem barulho, e de vez enquanto, organizava meus processos. Abri um livro de história, no capítulo sobre as grandes guerras da nossa civilização, mas apenas folhei as páginas, não vi as imagens e nem as letras. Esperei. Você trabalha demais, seus colegas não se dedicam tanto ao trabalho como você e ainda ganham a mesma coisa. O jantar está sendo servido. Comenta minha esposa.
A empregada servia o jantar. Minha esposa bebia a quarta taça de vinho e meus filhos me cobravam a mesada do mês que esqueci de depositar na conta deles.
A novela começou e a minha diversão também: convidei minha esposa para passear de carro na orla da Prainha Grande. Eu tinha certeza de que ela não ia. Não há diversão em passear todas as noites de carro pela orla, pois a brisa do mar torna-se artificial devido ao ar condicionado do carro. Minha esposa respondeu. Então, decidi seguir meu caminho.
Fui à garagem. Não havia ninguém. Abri o porta-malas do meu carro e peguei uma pequena caixa preta que estava ao lado da minha maleta de ferramentas. Abri lentamente a caixa para contemplar a minha preciosidade que ali estava bem guardada. Uma pistola, uma das melhores do mundo, que bem usada, funciona como uma sub-metralhadora. Minuciosamente, acariciei e a coloquei em minha cintura. Abri o portão da garagem. Entrei no carro e pensei: está na hora de sair à caça! Observei a rua e fechei o portão da garagem. Fui em direção a orla da Prainha Grande, lá não há muita iluminação (só quando a lua está cheia, atrapalhando os meus planos.), só alguns pescadores que pescam nas pedras que ficam entre o acostamento e o asfalto, esses homens, na maioria das vezes, compartilham suas solidões com os candeeiros e as varas de pescar. O lugar era perfeito! Só em pensar nisso, senti o coração palpitando e a emoção aumentando ainda mais, quando de longe, vi uma luzinha de candeeiro e a sombra de um homem erguido. Jovem ou velho? Não importa. Pois a sensação era a mesma. Diminui a velocidade e desliguei os faróis. Parei cerca de 100m de distância, o pescador estava de costas, não percebeu o ritmo do meu coração e nem notou a minha respiração ofegante. Tirei a arma do seu aconchego, mirei precisamente na cabeça do pobre animal e atirei. A bala corria como um carro de fórmula 1, em uma velocidade média de 170km/h ao ponto de chegada e, enfim, vencemos! O ser racional ajoelhou-se e em seguida caiu no penhasco abaixo, em silêncio e imóvel, para servir de comida para os outros animais, uma maneira de propagar a teia alimentar. Aproximei-me das pedras, só para conferir o êxito da minha caçada. Tive êxtase em ver o corpo boiando e seguindo o seu caminho no alto mar.
Estacionei o carro na garagem. Abri orgulhosamente o porta-malas do meu carro e peguei o baú preto. Embrulhei o meu tesouro em um lenço dourado e o guardei com muita satisfação.  
Todos ainda estavam na sala, assistindo à última cena da novela, percebi por meios dos comentários. Você está mais calmo! A cada dia que passa esses passeios estão lhe fazendo bem. Afirmou minha mulher. É, acho que sim. Respondi, vou dormir, amanhã tenho muito processo para analisar. Boa noite.

Produzido por: Mirlene Coutinho

VIDA DUPLA

Cheguei em casa carregando uma pasta cheia de intimações, papéis e estudos. Minha mulher assistia ao capítulo da novela, tomando uma taça de vinho, disse sem tirar os olhos da tela, você está com uma cara de preocupação, ocorreu algo? Eu apenas respondi, cansado. No quarto ao lado, minha filha teclava com uma amiga e o barulho do controle do Playstation vinha do quarto do meu filho. Você não vai tomar um banho para jantarmos juntos hoje? Perguntou minha mulher; tira essa gravata, toma um banho relaxante e eu e as crianças te esperamos lá em baixo na sala de jantar.
Fui para a biblioteca, único lugar onde podia ficar tranquilo e não ouvir  barulho algum. Coloquei a pasta sobre a mesa, sentei na poltrona em frente aos livros e, por um instante, cochilei. Querido, o jantar está servido, compartilhe conosco, disse minha mulher batendo na porta da biblioteca. Aguarde um momento, preciso tomar um banho.
Ao chegar à sala, minha família me esperava. A copeira servia o jantar. Meus filhos cresceram e eu e minha mulher estávamos velhos. Experimenta, é aquele suco de abacaxi com hortelã que você gosta. Disse minha mulher. Meus filhos nada diziam, apenas comiam e nos olhavam enigmaticamente.
Vamos dar uma volta? Convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora de passar todos os cremes antirrugas. Não sei qual é a graça de sair para passear debaixo de chuva, também, aquele carro custou os olhos da cara, tem de ser usado mesmo, prefiro ficar e cuidar da minha pele. Respondeu.    
Tirei o carro, coloquei os cachorros para dentro, fechei o portão e entrei no carro. Colocar os cachorros para dentro de casa me deixou chateado, mas me alegrei ao ver que a chuva havia passado. Enfiei a chave na ignição, era um motor potente, silencioso, escondido no capô aerodinâmico. Saí como sempre para uma badalada rua de prostituição no Rio de Janeiro. Parei o carro em uma rua antes para que ninguém me visse ou gravasse a placa. A rua era mal iluminada, cheia de lojas fechadas, bares e cabarés. Mulheres! Muitas mulheres para que eu escolhesse minha vítima naquela noite. Ela caminhava desengonçada, com roupas nojentas, curtas e completamente sem classe. Era ela que eu usaria para descarregar toda a minha adrenalina. Saímos. Fomos para o carro. Para onde você está me levando? Perguntou  ela meio assustada. Para um lugar inesquecível, respondi. Ela segurava inquieta sua bolsa minúscula e mascava um chiclete meio branco e gasto.
Chegamos. Aqui? Então, senhor, o que vai querer hoje? Perguntou-me com uma voz trêmula. Quero que desça e em frente ao carro faça um strip. Mas...? Principiava a questionar. Mas nada, desça. Ordenei. A estrada era escura, não havia nada a não ser o cheiro de terra molhada e o desfiladeiro ao lado. Ela desceu e quando estava bem na frente, acelerei o carro acertando-a em cheio. Ela caiu no desfiladeiro gritando.
Segui para casa. Cheguei, entrei, coloquei os cachorros para dentro, fechei o portão, examinei o carro, tudo perfeito, entrei em casa.
Meus filhos jogavam paciência na mesa da sala e minha mulher dormia no sofá com a cara cheia de um creme verde. Vou dormir, amanhã, tenho muitas intimações para entregar.

Produzido por: Conceição Cavalcanti

CONTO

O conto é uma narrativa de tradição oral cuja intenção é contar histórias. Evoluindo para a tradição do registro escrito, o conto se consolidou como literatura a partir da Idade Moderna, porém o auge do seu desenvolvimento foi o século XIX com o aparecimento da imprensa. O conto apresenta uma estrutura narrativa curta, pois descarta os detalhes que não são úteis ao desfecho da narração, tem uma linguagem de fácil entendimento, e é um gênero que apresenta os fatos lentamente, por isso, é dotado de suspense. A temática deste gênero é ilimitada e sempre ligada a um fato acontecido que tenha um momento especial e prenda a atenção do leitor. Apesar de ser uma narrativa curta, o conto não obedece à tradição de situar o leitor em relação ao tempo cronológico.
Referência: Conceito retirado do trabalho Literatura no contexto educacional cujas autoras são: Mirlene Coutinho e Maria da Conceição Cavalcanti.



Aplicando a teoria...Dica de atividade.


Após ouvir, ler e interpretar contos variados, é hora de produzir! Escolha junto com os alunos contos interessantes e analise a estrutura composicional de cada texto. Após verificar essa esturtura do enredo, peça para que os alunos usem e abusem da criatividade para criarem seus próprios textos. Corrija-os e veja se a esturtura do enredo é parecida com a do conto base e, em seguida, faça aulas de reescrita de textos para solucionar os problemas linguístico-textuais mais recorrentes, a fim de que seja confeccionado um livro de contos da sala.