O caçador de palavras
[...] Foi por causa de minha mania de ir ao cinema
que tudo aconteceu. Naquela noite, eu estava cansado. E o filme era bem
aborrecido, para dizer a verdade. Só fiquei para a segunda sessão porque estava
chovendo, e não queria molhar os sapatos. Nos primeiros dez minutos de filme,
adormeci. Meu corpo escorregou da cadeira, e dormi tão confortavelmente como em
minha cama.
Acordei em plena escuridão e silêncio. No início,
nem sabia onde estava. Aos poucos, meus olhos foram se acostumando com a falta
de luz. Vi a tela branca, o letreiro de saída apagado. Não entendi,
imediatamente, o que estava acontecendo. Levantei atordoado. Com dificuldade,
empurrei a porta de entrada. Pesada. Saí do saguão. Só então percebi o que
havia acontecido: haviam esquecido de mim no cinema. Completamente. Talvez não
tivessem me visto. Olhei o relógio, estava no meio da noite.
Quis telefonar. Fui até o escritório, estava
trancado. Pensei em quebrar o vidro. Nunca senti tamanho desespero.
É incrível como um cinema vazio, à noite, pode ser
tétrico. Olhava para as paredes, via sombras. Ouvia ruídos. Ao mesmo tempo,
tentei raciocinar. Arrombar a porta, ou qualquer coisa do tipo, poderia
terminar em confusão. Chamar a polícia também: como explicar minha presença, se
todos pensariam, no primeiro instante, que eu era um ladrão? O ideal, sem
dúvida, era aguardar algumas horas, e esperar, pacificamente, que alguém viesse
abrir o cinema. Poderia, então, sair calmamente. Como passar aquelas horas
difíceis? Foi quando vi, no canto do balcão da doceria, ajudando a apoiar uma
lata, um livro grosso. Fui até ele. Peguei. Era bem pesado.
Saí do saguão, onde só entrava a luz do luar, e fui
ao banheiro. Acendi a luz. No hall de entrada que levava aos dois toaletes,
havia um sofazinho velho. Sentei, e abri o livro. Era um dicionário com a
origem e o significado das palavras. No primeiro instante, pensei:
– Bem que eu preferia um livro policial!
Puro engano. Só para me distrair, comecei a
folheá-lo. Pouco a pouco, fui sendo envolvido pelo universo fascinante das
palavras. Elas começaram a brilhar para mim como estrelas no céu. Da mesma
forma que todas as pessoas, sempre vivi cercado por verbos, substantivos,
adjetivos. Com eles, dei forma a sentimentos, expressei vontades, descobri risos,
comuniquei emoções. Mas, assim como não se pensa conscientemente nos dedos cada
vez que se pega um garfo, também não me detinha nas palavras. Elas faziam parte
de mim como os olhos, os cabelos e as unhas. Eram tão enredadas no cotidiano
como o elevador do prédio, o ônibus, o cartão de ponto. Apesar de fluírem
através da vida com tanta facilidade quanto o ar que respirava, as palavras
eram um instrumento que eu usava mecanicamente.
De repente, tudo mudou.
Naquela noite, descobri que as palavras guardam histórias.
Percorrem os tempos, registrando emoções, atravessam vidas. Entendi, pela
primeira vez, o fascínio dos poetas ao brincar com elas, criando versos e rimas
que trazem os sons das marés, a cadência dos sentimentos, o colorido das
primaveras. A paixão de quem faz letras de músicas, sonoras por si sós, onde as
palavras remetem umas às outras, dançam entre si. Senti o encanto dos
escritores, que as usam para criar mundos e vidas, como se fossem bilhetes para
viagens fulgurantes. E, então, eu também me apaixonei, porque descobri, mais
que tudo, o quanto as palavras são vivas.
[...]
(Walcyr Carrasco. São Paulo, Ática, 1994. P. 8 a
11.)
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